quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

New journalism: Vivência



Pela brecha da janela


Janelas são brechas para as pupilas dilatadas descansarem de telas de computadores e TVs – disse-me certa vez um oftalmologista. Na janela ao lado da minha mesa de trabalho, metade da visão é o finito de um muro escurecido, sem reboco e com desenhos formados pela descida de chuvas. Além do tijolo à vista, vem a amplidão do céu, sem nenhuma construção à frente.
Sentei-me para transcrever uma ‘vivência diferenciada’ por exigência de um dos exercícios literários quando me deparei com o infinito do céu e sua imensidão murada acima. Devaneios mesmo! Veio à lembrança, nítidas imagens de um acontecimento simples e tão marcante, como se estivesse novamente acontecendo.
O azul celeste da janela ampliou-se para o mar visto do alto de uma ponte e senti o cheiro e os olhos ardidos de sal a admirar o belo e poderoso mover do vento que trazia a massa de água espumosa em ondas, numa representação do que é intocável, desconhecido. Na estrutura da ponte, a água quebrava e trazia pingos de chuva, banhando a muitos que ali se encontravam. Formava um bloco azul que vinha lá do encontro do azul do céu – o azul: cor do infinito – espumava branco e veloz como lebre e forte como uma tourada; batia na muralha de blocos de pedras gigantes; subia mais de quatro metros; chocava-se com fúria na construção de metal que um dia invadiu o espaço do oceano e agora era paisagem; de lá, descia em chuvas a molhar o que abaixo se encontrava.
Ao rever no imaginário o encontro furioso das ondas de quatro metros de encontro à ponte metálica de Fortaleza lágrimas espontâneas descem descontroladas, exatamente como desceram as lágrimas pelo choro naquele dia.
Lágrimas diferentes porque estas não as sinto com o mesmo sabor de sal e da companhia física do meu pai. Estávamos postados diante da ponte porque eu havia conseguido acompanhá-lo de volta a sua terra natal após uma saída miserável de 25 anos atrás, como retirantes de uma seca originada pela má-política(Terra e água no sertão há, e há muito mais formas de devolver, em serviços, o imposto pago).
Naquele dia, o som maior era o estouro da onda e da sua força, enquanto cada um se perdia em devaneios num misto de alegria e angústia. Sentia meu pai com um olhar cheio de pensamentos “lá dentro” e também rasos por tantos percursos desde quando saíramos de perto daquela imensidão inigualável. Sabe-se lá exatamente o que se passa nos pensamentos de uma pessoa que estava diante de algo tão próximo a si por mais da metade da vida e apenas agora tivera a oportunidade de ver e sentir. Há o mar! Meu pai nascera, criara-se e constituíra família em um lugar há menos de duas horas do mar, e nunca antes o tinha visto.
Aquela agitação toda se debatendo na estrutura metálica era como uma chibatada no coração que eu não sabia se era eu que levava ou se era meu pai que sentia de tão unidos ficamos por aqueles instantes. O barulho muito alto não era desagradável. Era um chilrear imenso que assoprava em um ouvido gigante e rebatia não só no meu coração, mas parecia que retumbava em cada um que estava por ali, numa resposta de composição obrigatória, por estarem todos no mesmo lugar e momento.
Depois da quebrada do mar, as gotas penetravam na estrutura abaixo dos nossos pés e subiam jatos de água dando banhos de espuma de sal. De cada lateral da ponte metálica, a espuma subia mais livre, numa altura tão grande que trazia admiração feita de medo e encantamento.
Era o exemplo real da invasão do homem em terras desconhecidas. A natureza incomodada para construir uma ponte de contemplação, de atração turística! Uma formação de vento e água que podia ir e vir com liberdade encontrava bloqueio e, de suave, ao encontrar a areia branca, violentamente chocava-se ao encontrar a ponte. Mas dizem que a intenção do homem, na maioria das vezes, é boa. Seu querer é agradecer a natureza, projetando seu aspecto para melhor usufruí-la, isso porque tudo lhe fora dado como presente.
Meus pensamentos estavam como ondas. Iam e vinham em divagações entre o que meu pai estaria pensando e o burburinho dos outros turistas que falavam e, de suas falas chegavam sons em porções de palavras superadas pelo barulho das ondas na ponte. Muitos não se continham na contemplação e comentavam que o mar não entendeu a intenção do projeto e ali revidava, bravio. A força da natureza sempre superior ao querer e construir humanos.
Com certeza aquele poderio de tanta beleza havia trazido ao meu pai a lembrança da retirada de sua terra para outras ainda desconhecidas e que agora representavam seu lar. Será que se perguntava por que essa magnitude terrena não lhe fora apresentada antes? Afinal era a primeira vez que via o mar e fora preciso buscar nova paisagem, tão longe, voltar na velhice e contemplar a grandiosidade das coisas de sua terra natal. Seu antigo lugar agora era um passeio, uma viagem de férias que nunca pensava que faria na vida.
Ao longe, ouço um noticiário vindo da vizinhança e o burburinho de uma palavra ou outra chega ao alcance dos meus ouvidos. Palavras que não formam nenhuma mensagem trazem-me de volta ao agora, deixando a quebrada das ondas na ponte da vida, lá nas reminiscências.
Fica a dorzinha da lembrança e a calma de algumas certezas um tanto confusas, afinal, foi a última viagem de meu velho pai. Meus ouvidos, por um instante sem medida, ouviram as batidas da onda com tanta força que trouxe um sufoco na garganta. Levanto-me para fechar a janela e uma brisa geme e me traz o sussurro do último suspiro vindo de um leito. De novo, tudo volta a ficar embaçado, tal como o esfumaçar da espuma do sal.
A vida cessa no corpo cansado. A brecha da janela desaparece. Volto para a tela que “descansa” e que, como eu, ficou sem vontade de trabalhar. Fecho o ciclo do dia e, no repouso, logo sonho estar em um navio. Em conversas com um velho capitão sobre suas histórias de navegação pelos portos do Brasil, Europa e continente africano, acordo sorrindo pela lembrança das descrições desse velho navegador que conheci em uma viagem...